Cérebro ou músculo ao meio

António Tadeia
4 min readOct 4, 2021
Crédito: Twitter FC Porto

O meio-campo é uma zona tão completa que se pode olhar para ela de várias maneiras. Por exemplo, até à titularidade de Bragança em Arouca, Rúben Amorim vinha olhando para ela de uma forma — e ninguém garante que não volte a olhar — em que quem por lá anda tinha predominantemente tarefas de arrastar a equipa. O meio-campo que o treinador campeão projetou para esta época, quer tenha sido por convicção ou por necessidades financeiras, não comportava o conceito de elo de ligação em que Jorge Jesus terá pensado quando pediu a contratação de João Mário. Daí a troca de provocações entre os dois antes dos jogos de um fim-de-semana que pertenceu aos médios. A Vitinha e Bragança no sábado pela forma como elaboraram na construção, a Carlinhos, Lucas Fernandes e Pedro Sá no domingo, por terem inibido a construção benfiquista.

Achei curioso que, depois das palavras de Rúben Amorim na sexta-feira e de Jorge Jesus no sábado, Vitinha e Bragança tenham sido os melhores em campo nos jogos do FC Porto e do Sporting. “O João Mário não teria aqui o estatuto ou a influência que tem no Benfica”, disse na sexta-feira Amorim. A reação teve o seu quê de defesa do seu próprio grupo, porque João Mário já não faz parte e, mais do que discutir o atual médio do Benfica, no Sporting faz falta debater o papel de Bragança. Foi isso que fiz no Futebol de Verdade da última quarta-feira, por exemplo. “[João Mário] Encaixou como uma luva”, respondeu Jesus no dia seguinte, não só para defender o jogador que esta época voltou a orientar, mas também porque é verdade — e não deixou de o ser com a derrota em casa com o Portimonense. Para lá da questão de defesa do grupo que cada um lidera, o que está aqui em causa são formas diferentes de olhar para o meio-campo.

Esta época, face a quem tinha disponível, Amorim imaginou um meio-campo de arrastão, de grande capacidade física. Apostou em Palhinha e Matheus Nunes e, quando se tratou de ir ao mercado, fixou olhares em Ugarte, outro jogador possante e forte nos duelos. Se Palhinha dá capacidade de pressão e melhorou muito o passe longo, o que lhe permite variar o centro de jogo e iludir pressão adversária, Matheus tem o poder de arrancar com a bola nos pés e queimar linhas em posse, de aparecer em zonas de finalização devido à sua passada larga. Nenhum dos dois dá à equipa aquilo que João Mário dá ao Benfica — e já dava ao Sporting na época passada –, que é gestão de ritmos de jogo e ligação interior em tabelas curtas. Tanto Palhinha como Matheus sabem acelerar, mas não sabem abrandar, põem os óculos de ver ao longe, mas falta-lhes detalhe, conduzindo a equipa a uma contradição entre o meio-campo e o ataque, a um futebol com uso excessivo dos corredores laterais e muito cruzamento, que é o que menos convém a avançados como Paulinho ou Sarabia, que pedem mais “diálogo” por dentro.

Amorim solucionou esse problema com Bragança, de cujos pés — e cérebro — saiu tudo o que de melhor o Sporting fez em Arouca. Mas o Sporting, em Arouca, não passou mal? Passou. E não é possível, de repente, explicar por que razão. É fácil dizer que foi pelo adiantamento de Matheus Nunes para o trio da frente e pela entrada de um peso pluma para o meio-campo, levando a equipa a perder capacidade de ganhar duelos ao meio, mas a verdade é que os 62% de duelos ganhos por Bragança não estão muito longe dos 70% de Palhinha, ele sim abaixo do monstro de intensidade que costuma ser, provavelmente devido à fadiga do jogo de terça-feira em Dortmund. É nestas alturas que se fala de intensidade. Mas o que é a intensidade? Vitinha é um jogador pouco intenso? Ninguém diria, olhando para as 125 ações com bola que o jornal O Jogo de hoje lhe credita no jogo com o FC Paços de Ferreira, no sábado, partida na qual foi também o melhor em campo. Mais um peso-pluma dotado de capacidade técnica e cujo principal músculo é mesmo o cérebro a ser crucial na definição do meio-campo de um candidato ao título.

É que também Sérgio Conceição tem uma ideia muito clara para a zona de meio-campo e ela parte de um jogador que não estava — Otávio. Geralmente é Otávio quem mete dúvida num setor onde os dois médios funcionam sobretudo como estabilizadores. Sérgio Oliveira e Uribe foram esse par fiável, equilibrando em processo defensivo e dinamizando quando a equipa recuperava a bola, mas o desequilíbrio cabia sobretudo aos passes de rotura de Otávio, à sua ligação com os homens da frente e à sua capacidade tática de transformar o 4x3x3 em 4x4x2, ora sendo terceiro médio, ora sendo ala direito. A ideia resistiu à saída de Marega — que era o alter-ego de Otávio, ora abrindo na direita, ora surgindo como ponta-de-lança — graças à polivalência de Taremi mas, sem Otávio, que está lesionado, Conceição precisou de um novo elemento desestabilizador e ele surgiu em criação na dupla que devia sobretudo dar à equipa segurança e dinamismo. Tal como Amorim abdicou em Arouca da ideia-base que adotara para esta época, Conceição aproveitou um jogo em casa com um adversário menos forte para deixar de lado uma ideia que já assumira há vários anos. Também sofreu, mas mostrou que pode mudar.

Nota — Este é o primeiro de dois artigos sobre as ideias dos candidatos para o meio-campo. O tema continuará na sequela com o Benfica e o SC Braga

O Último Passe é publicado de segunda a sexta-feira em antoniotadeia.com

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