O pedigree, a tática e a qualidade

António Tadeia
4 min readSep 16, 2021
Crédito: Twitter AFC Ajax

É evidente que à medida que se sobe o nível de exigência se notam mais as debilidades, mas as diferenças entre o descalabro do Sporting ante o Ajax e a exibição segura do FC Porto, em Madrid, contra o Atlético, não se explicam com essa coisa abstrata que é o “pedigree” de Liga dos Campeões. Este terá tido a sua importância no controlo emocional de uma equipa face ao descontrolo total de outra, mas o tema acaba aí. O resto — e o fundamental, aliás — foi uma questão tática e de qualidade. Sendo que a primeira influencia bastante a segunda. É o fato que se leva a uma entrevista de emprego: quem aparece roto e cheio de nódoas na camisa dificilmente consegue sequer ser levado a sério.

Em Madrid, Sérgio Conceição até deu um aspeto mais ofensivo ao seu onze do que no jogo com o Sporting, no sábado. Manteve o 4x4x2, mas surgiu com Corona a lateral na direita e abdicou de Marcano para introduzir Zaidu, que tem outra capacidade para surgir na frente. E chamou de volta Toni Martínez para emparelhar com Taremi no ataque. No fundo, isso serve para explicar que não é uma questão de se ser mais ou menos defensivo, mas sim de olhar para o adversário e perceber onde o confronto pode ser mais vantajoso, de escolher o campo de batalha. Em Lisboa, Rúben Amorim apostou na estrutura de sempre e nos jogadores que tinha, sem poder contar com Coates e Pedro Gonçalves, mantendo as ideias de sempre: sair com os três da frente como primeira linha de oposição à saída de bola do adversário, mantê-los altos à espera de uma transição, e defender com os cinco de trás, sempre apoiados pelos dois médios. E o Ajax fez o campeão nacional em frangalhos, por duas razões muito simples. Primeiro, porque os homens das suas linhas atrasadas brincaram com a pressão que era feita pelos três leões mais avançados, saindo sempre com qualidade. E, em consequência disso, na frente, os holandeses metiam sempre cinco, seis, às vezes até sete homens, tanto a defender alto como em ataque posicional, algo que nenhuma equipa portuguesa alguma vez teve o descaramento de fazer ao Sporting de Amorim.

Em consequência destas diferenças, o jogo de Madrid foi sempre um jogo de equilíbrios e o de Alvalade, influenciado também (é certo) pelo descontrolo emocional dos leões após os dois primeiros golos, acabou por transformar-se numa exposição itinerante daquilo que o campeão nacional faz mal. O FC Porto foi uma equipa solidária, que jogou junta e, por isso, foi capaz de fazer frente a um adversário mais poderoso? Foi! O Sporting foi uma equipa que deixou o jogo esticar e que o levou — e permitiu que o Ajax o fizesse — para sessões contínuas de desequilíbrios, potenciados por sucessivos lances de um para um, às vezes até de um para dois? Foi! A questão é que isso não aconteceu por estarem a jogar a Champions. Já é isso que dragões e leões fazem na Liga Portuguesa — e no caso dos leões isso não os impediu de se sagrarem campeões nacionais, com sucessivas performances inabaláveis do ponto de vista defensivo.

Aos que olharem para o jogo de ontem e acharem que, descoberta a pólvora, daqui para a frente qualquer equipa pode fazer ao Sporting o que o Ajax fez ontem: desenganem-se, porque para fazer aquilo não bastam a tática nem a definição de zonas de pressão alta ou a despreocupação e confiança dos centrais para saírem a jogar. É preciso qualidade individual, qualidade na exploração do espaço. Regressando à metáfora da entrevista de emprego, também não basta ao candidato chegar lá com um fato de marca e a cheirar aos melhores perfumes, porque se o que tiver para dizer for um chorrilho de asneiras também não vai ser escolhido e continuará desempregado. Além de ter sido um choque frontal com uma realidade de muitas limitações, sobretudo quando começam a aparecer lesões e castigos, o que o jogo de ontem ensinou ao Sporting — e ao seu treinador — é que não precisa de abdicar da estrutura, das ideias, da filosofia, mas que na Europa há equipas com qualidade para lhe fazerem coisas que ninguém se atreve sequer a sonhar tentar em Portugal e que, por isso, às vezes, é preciso fazer algumas cedências, por exemplo, na definição das zonas de pressão ou na colocação do bloco. Aliás, a história está cheia de vitórias épicas de portugueses contra holandeses, todas elas com um ponto em comum: uma solidariedade defensiva à prova de bala, a colocação do bloco mais baixo, escolhendo para campo de batalha o local onde o adversário tenha menos hipótese de lhes fazer mal.

Perceber isso é adquirir o tal “pedigree” de Champions. Que o FC Porto e Sérgio Conceição já têm e que o Sporting e Rúben Amorim precisam de encontrar rapidamente.

O Último Passe é publicado de segunda a sexta-feira em antoniotadeia.com

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