O problema (de) Solskjaer

António Tadeia
4 min readSep 27, 2021
Crédito: Facebook Manchester United

Não se avalia uma equipa por um lance nem um treinador por um jogo, mas o início do Manchester United-Aston Villa foi de certa forma sintomático do que estava para vir: há uma bola que entra na meia direita do ataque do United e Ronaldo e Greenwood acorrem ambos a ela, deixando a área despovoada e chocando um com o outro. Se alguma coisa, este lance mostra que Ole Gunnar Solskjaer ainda não conseguiu trabalhar a mobilidade na sua frente de ataque de forma a que o todo faça sentido. O resto do jogo mostrou uma equipa cheia de talento mas sem uma ideia. E sim, sei que a ideia é uma coisa muitas vezes sobrevalorizada no futebol — até hoje não conheci uma ideia acerca do tema a Alex Ferguson, por exemplo, e isso nunca lhe fez falta para ser um dos treinadores mais bem sucedidos da história do jogo. Mas lá que este Manchester United precisa de um conceito agregador, disso ninguém pode duvidar.

Muitas das análises sobre o jogo se centram no facto de ter sido Bruno Fernandes a bater o primeiro livre direto — Ronaldo bateu o segundo… — e a encarregar-se do penalti que, mesmo no final, ainda podia ter valido o empate aos Red Devils, não tivesse o português colocado a bola no topo da bancada, acusando a pressão de ter o CR7 na sombra ou a provocação de Emiliano Martínez, o guarda-redes argentino que suplicou excessivamente que fosse Ronaldo a chutar. Mas isso não tem a ver com a ideia. Quanto muito será liderança: o treinador foi capaz de dizer a Cristiano Ronaldo que o batedor ali era o outro e no final, se calhar, ter-se-á arrependido. A liderança, sim, é algo que os ingleses valorizam muito, mesmo estando eles contagiados neste momento pela presença de treinadores com ideias. Têm os dois mais representativos embaixadores da escola alemã de “Gegenpressing” em Klopp e Tuchel, têm o portador do facho do “Tikitaka” em Guardiola, mas todos estes treinadores conceptuais continuam a conviver com os herdeiros do futebol britânico puro e duro, com os Allardyces desta vida.

No fundo, este é um confronto que já data dos anos 70 do século passado, quando o Liverpool FC de Bob Paisley e o Ipswich Town de Bobby Robson começaram a adotar uma perspetiva mais continental do jogo, com mais passe e menos correria para cima e para baixo atrás de longas bolas aéreas. Ferguson entrava mais nesta categoria do que na do futebol britanizado e, sobretudo, soube aproveitar uma geração de talentos incomparável para, através de uma liderança férrea e de uma cultura de exigência sem igual, montar uma equipa imbatível no plano interno e temível internacionalmente. É uma abordagem possível. Menos valorizada pela intelectualidade — ninguém saberá dizer qual foi a verdadeira contribuição de Ferguson para o futebol a não ser que fez crescer jogadores — mas nem por isso menos válida no que a resultados diz respeito. É que para se ser treinador não tem de se ser necessariamente um fenómeno de originalidade, um descobridor de novas formas de jogar, um portento na leitura de jogo, capaz de o mudar com trocas ou nuances táticas. Às vezes basta ser coerente no que se bebe de outros e trabalhar para que tudo faça sentido.

Quantos treinadores inovaram conceptualmente nos últimos 50 ou 60 anos de futebol? Três? Quatro? Niels Liedholm, com Arrigo Sacchi na sua peugada, na instituição da “Zona-pressing”. Stefan Kovacs e Rinus Michels, seguidos por Johann Cruijff e depois por Pep Guardiola, nas diversas variações do futebol total, que nos conduziu ao “TikiTaka”. Pacho Maturana com El Loco Bielsa, centrados na liberdade poética do jogador e apoiados pela verve lírica de Jorge Valdano na escrita — o que permite pensar que, muitas vezes, a ideia depende sobretudo da forma como somos capazes de a explicar e de a tornar atrativa ao público em geral para que ela possa subsistir. Klopp s alemães do “Gegenpressing”, uma espécie de condensação “heavy metal” das duas primeiras ideias aqui apresentadas. E, no entanto, houve muito mais gente a ganhar coisas, coisas importantes e muitas vezes. O que nos diz que para ganhar nem tem de se ter uma ideia. Aliás, muitas vezes nem é preciso copiá-la com rigor. Porque há muitas outras formas de lá chegar.

Pode-se ganhar, como já disse de Ferguson, à custa da liderança e da cultura de exigência. Pode-se ganhar através da capacidade de operacionalização no campo de treinos, criando e executando exercícios que incrementam a capacidade opara o jogo coletivo. Pode-se ganhar graças a uma leitura de jogo que permita fazer sempre as melhores alterações durante os jogos. Pode-se ganhar deixando os jogadores à vontade para decidir e centrando toda a sua atuação no bem-estar geral deles, nunca lhes exigindo muito. Pode-se ganhar tornando-lhes a vida tão difícil durante a semana que, quando chegam ao jogo, eles estão soltos e capazes de o encarar como um doce no final da refeição. Pode-se ganhar de mil e uma maneiras. E o problema do Manchester United é que suspeito que Solksjaer não domina nenhuma delas.

O Último Passe é publicado de segunda a sexta-feira em antoniotadeia.com

--

--